Com seu samba afro único e contagiante, as músicas e referências culturais do Ilê Aiyê se tornaram praticamente um patrimônio imaterial do país.
Reconhecido mundialmente em função de seu ritmo, dança e cores, o primeiro bloco afro do Brasil encanta turistas e curiosos.
Além disso, ele utiliza a arte como ferramenta para exaltar a cultura negra, para expressar sua religiosidade e defender pautas sociais.
A melhor parte é que tudo isso é feito com muita energia, simplicidade e doação, mostrando a força do movimento que há mais de 45 anos influencia o país.
Mas o que há por trás de seu ritmo? Qual a relação entre as músicas e referências culturais do Ilê Aiyê?
O primeiro passo para responder essas perguntas é entender as raízes do bloco, que é muito maior do que apenas alguns dias de Carnaval.
Referências culturaisdo Ilê Aiyê
Quem já escutou alguma música do Ilê certamente já imagina quais são suas referências culturais não só no seu ritmo, mas também nas suas cores, letras e danças.
De forma simples, é possível afirmar que o nascimento e o desenvolvimento desse bloco se baseiam em três pilares bem definidos.
O primeiro deles é a religião, através do uso de elementos de religiões de matriz africana, especialmente do candomblé.
Já o segundo pilar, de certa forma, está ligado ao primeiro. Trata-se do resgate da história do povo negro, da valorização de seus ancestrais, de sua cultura e de seu modo de enxergar o mundo.
Por fim, mas não menos importante, o terceiro pilar é o próprio povo negro, que se vê representado e valorizado através de todos as características que definem o bloco.
No entanto, para entender melhor por que esses três pilares sustentam as músicas e referências culturais do Ilê Aiyê, é fundamental conhecer cada um deles com mais profundidade, como é possível entender nos próximos tópicos.
Resgate histórico
Fundado em 1974, no bairro da Liberdade, em Salvador, Bahia, o bloco do Ilê nasceu com uma proposta ousada: ser formado exclusivamente por pessoas negras. Naquela época, a decisão foi inusitada. Até então, não existia nenhuma associação carnavalesca voltada apenas para negros.
O objetivo dessa decisão era grandioso, embora bem simples: valorizar a cultura desse povo e permitir a representatividade negra dentro do Carnaval.
Para isso, as pessoas envolvidas no projeto se inspiraram em elementos históricos da religião e cultura dos povos africanos, buscando o resgate dessas referências.
Com consequência, além de permitir que a população, especialmente o povo negro e os periféricos, conhecessem sua própria história, o uso dessas referências também promoveu a disseminação e a valorização desse conhecimento cultural.
Vale lembrar que foi somente em 2003 que foi promulgada a Lei Federal nº 10.639, tornando obrigatória o ensino de história e cultura afro-brasileira e africana nas escolas públicas.
Ou seja, antes desse período a população tinha pouco ou nenhum contato com esses elementos históricos.
Nesse contexto, fica mais fácil de entender a importância do trabalho do Ilê Aiyê de resgatar a ancestralidade do povo negro ao longo desses mais de 45 anos de existência e resistência.
Mas como esses ancestrais são representados em suas músicas?
A ancestralidade na música do Ilê Aiyê
A representação e valorização da história negra ocorre de diversas formas na musicalidade do Ilê. Através do uso de expressões culturais, de citações diretas ou por meio das escolhas de temas específicos para a festa do Carnaval.
A música Negrice Cristal (Viva o rei), por exemplo, é uma das músicas que expressam esse resgate da ancestralidade.
“Viva o rei Osei Tutu
Ashanti a cantar
Salve o nosso rei Obá”
Trecho da música Negrice Cristal (Viva o rei).
A letra faz uma homenagem ao Rei Osei Tutu, coroado em 1701 e que exerceu o cargo até 1717, quando foi assassinado durante a guerra contra os Aquiéns. Ele foi um dos fundadores do Império Axante, formado por um grupo étnico Akan da África Ocidental.
Até hoje, Osei Tutu é lembrado como símbolo de inteligência, força e coragem, e foi eternizado na música “Negrice Cristal”, lembrando a relevância das lideranças negras no continente africano.
Já a música Axé em Olorum presta uma homenagem aos grandes guerreiros do povo Zulu e das grandes tribos Ngoni, que ocupavam a região sul da África.
“Somos negros de cá
Shaka um lendário jovem militar
Do povo Ngoni da história de lá
Shaka fundador da nação Zulu”
Trecho da música Axé em Olorum.
Através dessa e de outras músicas, o bloco ajudou a divulgar parte da herança histórica do continente africano e ainda ajudou os negros a conhecerem seus próprios ancestrais.
A influência da religiosidade
A origem do Ilê Aiyê está escrita na história do terreiro Ilê Axé Jitolu. Fundado em 1974, a sede do bloco funcionou durante quase 20 anos dentro do terreiro, mas isso não ocorreu por acaso.
Desde o início, o fundador do bloco, Antônio Carlos dos Santos Vovô, o Vovô do Ilê, utilizou referências religiosas para inspirar o trabalho e as ações do Ilê.
Além disso, é importante destacar a influência de Mãe Hilda em toda a história do bloco. Mãe Hilda Jitolu era ialorixá, isto é, sacerdotisa líder em iorubá, do terreiro Ilê Axé Jitolu, e foi a principal apoiadora de Vovô do Ilê, atuando não só como conselheira, mas também como líder espiritual do bloco.
Por insistência de Mãe Hilda, a atuação do Ilê é muito maior do que o próprio Carnaval. O bloco também passou a desenvolver diversos projetos sociais, tais como o Projeto de Extensão Pedagógica do Ilê Aiyê e a Escola de Percussão, Canto e Dança Band’erê, por exemplo.
Também por incentivo da matriarca do bloco, até hoje ocorrem interdições de rituais dos santos nas músicas, danças e vestimentas do Ilê, indicando a ligação do bloco com as heranças dos orixás e com os costumes sociais e culturais da mãe África.
“Iyalorixá maior
Zeladora da crença, candomblé
Mãe Hilda Jitolu, guerreira
Mãe Stela de Oxossi, guerreira”
Trecho da música Força Afro Brasileira.
A música “Força Afro Brasileira”, por exemplo, é uma das canções que mostram, de forma clara, não só a influência da religiosidade no bloco, mas também a importância de Mãe Hilda para o Ilê.
Mãe Preta, representatividade negra
“Se me perguntar
De que origem eu sou
Sou de origem africana
Eu sou, com muito orgulho eu sou”
Trecho da música Minha origem.
Com todas as influências apresentadas anteriormente, o bloco do Ilê Aiyê também é um espaço de valorização da cultura negra.
Por isso, a população negra encontra nas músicas, danças e nos integrantes do próprio bloco, um espaço livre do preconceito e da discriminação que, infelizmente, ainda existe no país.
Nesse contexto, a música é mais do que uma expressão artística, mas também um grito por liberdade e um lembrete para que o negro também orgulho de sua negritude.
Além disso, o Ilê também dá uma atenção especial às mulheres negras, que são muito valorizadas e enaltecidas pelo bloco. A Mãe Preta, por exemplo, é um dos arquétipos femininos utilizados pelo bloco e representa a mulher negra que sustenta os filhos e é um pilar da comunidade.
Por isso, o feminino é tão valorizado nas canções e nas ações do bloco. Nesse sentido, uma das iniciativas mais famosas do Ilê é a Noite da Beleza Negra, quando é escolhida a Deusa do Ébano, evento importante para a valorização da beleza negra, historicamente ignorada pela sociedade.
No entanto, é importante lembrar que o bloco também sofreu críticas por causa de seus princípios considerados rígidos. Como foi citado anteriormente, o bloco é formado exclusivamente por negros, ou seja, não aceita brancos.
O Ilê também decidiu não se curvar às tendências do mercado musical, permanecendo fiel aos seus princípios identitários, sociais e educacionais.
E o efeito dessas decisões foi positivo. Afinal, o trabalho do bloco continua sendo impactante, produzindo efeitos sociais relevantes, bem como festas lindas e músicas contagiantes.
Música, ritmo e dança: O som do Ilê Aiyê
O nascimento do Ilê Aiyê foi decisivo para o surgimento de um ritmo musical que hoje é bastante conhecido: o samba afro.
Apesar de ser parecido com o samba-reggae, que é característico de outros blocos afro, como Olodum e Filhos de Gandhy, o samba afro utiliza raízes musicais e toques diferenciados.
O samba-reggae é inspirado principalmente pela batida jamaicana, misturada com elementos do funk, do merengue, salsa e do candomblé. Já o samba-afro nasceu da mistura entre o samba com os toques utilizados nos rituais do candomblé.
Os músicos e compositores se inspiraram na religião e utilizam esses toques para criar um ritmo diferenciado, que caracteriza a música do bloco e é tocado pela Band’Aiyê, a banda profissional do Ilê.
Para entender melhor as origens e a personalidade do samba-afro, vale a pena assistir ao vídeo abaixo.
Band’Aiyê e a importância da Band’Erê
A banda profissional do Ilê, que se apresenta em diferentes eventos e festas junto com os cantores e dançarinos, recebe o nome de Band’Aiyê. A banda é formada por diferentes percussionistas, que tocam surdos, os repiques, o martelo, a caixa, o timbal, entre outros.
Os tambores, muito utilizados no candomblé, saem dos terreiros e se tornam personagens principais das festividades, cujo som garante lugar de destaque na banda.
Em eventos pequenos, geralmente a composição da Band’Aiyê é reduzida, e conta com cerca de nove músicos.
No entanto, em shows e eventos grandes, como o Carnaval, a banda pode contar com mais de 100 instrumentistas, garantindo aquela musicalidade contagiante, forte e marcante que todo mundo sabe que é característico do Ilê.
Juntando o samba-afro do bloco com suas causas sociais e educacionais, surgiu o projeto Band’Erê, que oferece aulas gratuitas de canto, dança e percussão. Além disso, os estudantes que ingressam no projeto ainda aprendem língua portuguesa, matemática, toque sagrada e corte e costura.
A iniciativa deu tão certo que desde 1992, o projeto tem sido utilizado como um espaço de socialização importante para tirar os jovens da rua. Os estudantes têm suas vidas transformadas com as oportunidades apresentadas pelo projeto.
Muitos deles chegam a ingressar na Band’Aiyê, que é a banda profissional do Ilê. Outros, aproveitam o aprendizado e escolhem caminhos alternativos. O ex-aluno Luciano Piu, por exemplo, se tornou músico profissional e passou a trabalhar na banda do cantor Léo Santana.
Assim, a Band’Erê se tornou mais um exemplo da força da música do Ilê não só para formação do bloco, mas também para a mudança social.
Que bloco é esse? Conhecendo as músicas do Ilê.
“Que bloco é esse? Eu quero saber
É o mundo negro que viemos mostrar pra você (pra você)
Branco, se você soubesse o valor que o preto tem
Tu tomavas banho de piche pra ficar negrão também.”
Trecho da música “Que bloco é esse?”
Uma das músicas mais conhecidas do Ilê, “Que bloco é esse?” deixa bem claro qual é o objetivo do movimento: apresentar e valorizar o mundo negro. A música é uma das faixas do disco Canto Negro 1, gravado em 1984 e que foi o primeiro lançado pelo bloco.
Nesse mesmo disco, canções como “Mãe Preta”, “Depois que o Ilê Passar” e “Negrice Cristal” também se destacam e são populares até hoje.
Mas esse não foi o único disco lançado pela banda. Em 1989, o Ilê gravou seu segundo disco, o Canto Negro II, que contava com outras músicas marcantes do bloco, como “Deusa do Ébano”, “Canto de Cor” e “Ilê de Luz”.
Na década seguinte, em 1996, o bloco gravou seu terceiro disco, o Canto Negro III, que lançou músicas como “Minha Origem” e “Axé de Olorum”.
Já em 1999, o bloco gravou o CD Canto Negro IV, em comemoração aos 25 anos do Ilê. Nesse material, músicas como “O mais belo dos belos”, “Deusa do Ébano 2” e “Badauê” fizeram sucesso.
Por fim, em 2015, o Ilê Aiyê lançou o CD e DVD “Bonito de se ver”, em comemoração aos 40 anos de existência do bloco.
Com essa trajetória e mais de 90 músicas lançadas, o Ilê conseguiu colorir e encantar o Brasil e o mundo, e ainda conseguiu transmitir sua mensagem através da arte e da cultura.